sexta-feira, 11 de abril de 2025

O mercado não é livre para aprisionar os brasileiros na fome.

Do ovo à soja, o roteiro se repete com precisão constrangedora: o Brasil exportador passa a ver seus próprios alimentos evaporarem das prateleiras porque alguém no exterior resolveu pagar mais caro. 

Primeiro foram os ovos, com explosão de mais de 300% nas exportações brasileiras em março, puxadas pelos Estados Unidos em busca de suprimento em decorrência da gripe aviária*. Agora, é a vez da soja. A soja brasileira começa a ser comprada em larga escala pela China em reação direta à guerra comercial deflagrada por Donald Trump**. A pergunta que não quer calar é: até que ponto, em nome do lucro usufruído por poucos, mas sofrido por muitos, irão os preços dos alimentos do Brasil?!

Diante das últimas notícias, nada resta ao povo além de aguardar a soja ter elevação de preços e ficar tão cara quanto os ovos no Brasil. O que sobra no país em produção passa a faltar em consumo para os nacionais a depender da demanda dos outros países. Não há benevolência empresarial nessa equação, apenas a liberdade de exportar sem limites. Quando a demanda internacional paga mais, a prioridade interna se dissolve e o Estado, ausente, permite que a inflação e a fome avancem em nome do vil metal.

A ironia reflete o oportunismo de certos setores que, diante da alta demanda externa, priorizam o lucro em Dólar, em Euro, em Yuan Chinês e ignoram os efeitos internos. Por mais que nossa Constituição imponha a função social da propriedade (art. 5º, XXIII) e determine que a ordem econômica deva assegurar justiça social e defesa do consumidor (art. 170, III e V), o texto constitucional não passa de folha de papel sem ações proativas tanto dos poderes constituídos quanto dos nossos órgãos regulatórios.

O deslocamento da produção do mercado interno para o externo não é mera dinâmica de mercado, mas consequência direta da inação estatal diante da previsibilidade do atual estado de coisas. A Constituição estabelece obrigações que devem ser cumpridas. Quando ela afirma que a ordem econômica deve atender à justiça social, não está sugerindo: está mandando. Ignorar isso significa romper o pacto federativo em favor da lógica de mercado desumanizada. A escassez e a inflação internas, portanto, não são efeitos colaterais extraordinários; são reflexos lógico-dedutivos de um país que escamoteou o interesse público primário: o melhor para a coletividade.

O Estado, na forma do art. 174 da Constituição, deve atuar como agente normativo e regulador da atividade econômica com as funções de fiscalizar, incentivar e planejar o exercício dessa atividade, que deve ser determinante para o setor público e indicativa para o setor privado. Além disso, a Lei nº 8.171/1991 (Lei de Política Agrícola no Brasil), especialmente em seu art. 2º, I, traz como pressuposto da política agrícola o dever de subordinação às normas de interesse público, de modo que sejam cumpridas as funções social e econômica da propriedade. E mais: o art. 2º, IV da mesma Lei estabelece que o adequado abastecimento alimentar é condição básica para garantir a tranquilidade social, a ordem pública e o processo de desenvolvimento socioeconômico do país.

A omissão dos Poderes Executivo e Legislativo diante do desabastecimento interno e da alta nos preços de alimentos essenciais, como os ovos e, em pouco tempo muito provavelmente, a soja, significa a falência de suas funções institucionais. Exportar até que falte. A escolha está feita; assim como a responsabilidade que recai (ou deveria recair) com peso, sobre o Poder Executivo - em especial o Ministério da Agricultura e a CONAB, que deveria manter estoques reguladores - e sobre o Poder Legislativo, que silencia diante da deterioração do acesso à alimentação. 

Permitir que a lógica de mercado se sobreponha ao dever constitucional de garantir o bem-estar da população é falha institucional grave e injustificável. Resultado: inflação alimentar e violação da dignidade humana.

Essa falha de mercado, situação em que a lógica privada de maximização do lucro não assegura o fornecimento de bens essenciais à população, abre margem para que o povo busque o Poder Judiciário no intuito de que os alimentos não continuem a ser tratados como meros ativos financeiros, mas sim como bem essencial, tutelado pela ordem econômica constitucional e, sobretudo, pela própria dignidade humana (art. 1º, III, da CF).


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*G1. Com preço alto no Brasil, exportações de ovos disparam e sobem mais de 300% em março, puxadas pelos EUA. Rio de Janeiro, 8 abr. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2025/04/08/com-preco-alto-no-brasil-exportacoes-de-ovos-disparam-e-sobem-mais-de-300percent-em-marco-puxadas-pelos-eua.ghtml. Acesso em: 11 abr. 2025.

**ROCHA, Graciliano. China já acelera compra de soja brasileira em meio à escalada das tarifas. UOL Economia, São Paulo, 11 abr. 2025. Disponível em: https://economia.uol.com.br/colunas/graciliano-rocha/2025/04/11/china-ja-acelera-compra-de-soja-brasileira-em-meio-a-escalada-das-tarifas.htm. Acesso em: 11 abr. 2025.


domingo, 6 de abril de 2025

O uso do batom enquanto crime no concurso de pessoas.

As invasões, depredações, destruição de patrimônio público, roubo de armas do GSI e ameaças a autoridades em 8 de janeiro de 2023 configuram afronta direta e grave ao Estado de Direito. Tais atos se assemelham a práticas terroristas pela forma como buscaram intimidar, desestabilizar e paralisar o funcionamento dos Três Poderes.


Ainda que alguns atos isoladamente pareçam inofensivos, como sujar a famigerada estátua com batom, dentro do contexto da prática criminosa coletiva esses atos adquirem gravidade concreta. O conjunto dos atos ocorridos acarretaram em enorme mácula às instituições da República.

Juridicamente, a teoria da coautoria e da participação penal ensina que todos aqueles que concorrem para o resultado, mesmo sem executar diretamente a ação principal, respondem por ela. O Código Penal, no artigo 29 sobre concurso de pessoas na prática do delito, é bastante claro: "Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade."

Ora, assim como o vigia que permanece do lado de fora enquanto seus comparsas invadem uma residência e a destroem é igualmente criminoso; quem contribuiu, incentivou ou participou da dinâmica dos atos do dia 8 de janeiro, também incorre em responsabilidade penal (ainda que com um simples batom). Trata-se da teoria do domínio funcional do fato, que atribui responsabilidade não apenas a quem pratica a conduta executória, mas também àqueles que integram o plano comum, controlando ou viabilizando sua concretização.

O Estado de Direito não se sustenta sobre permissividade diante da violência institucionalizada. A punição é tanto legítima quanto necessária para manter a integridade do sistema jurídico e evitar que os cidadãos fiquem sem proteção diante do colapso das estruturas institucionais do Brasil. Portanto, a responsabilidade penal em relação a todos os envolvidos é indispensável. A depender do contexto, até mesmo atos aparentemente inofensivos, como sujar a estátua da Justiça com batom, inseridos no contexto coletivo dos crimes de 8 de janeiro, adquirem gravidade concreta e exigem resposta firme do Estado de Direito.